ou o dia em que Roger Vailland decidiu : " nunca mais colocarei o retrato de um homem nas paredes da minha casa."
[ Diário Íntimo de Roger Vailland ]
Cheguei a amar os tiques da sua linguagem. Colocaca as primeiras pedras de um raciocínio, depois dizia «prossigamos»; adorei isso. Mas ao regressar a casa, foi bem preciso retirar o seu retrato da parede, por cima da minha secretária; deixá-lo, seria ter tomado partido contra aqueles que, lá, prosseguem a construção do mundo que ele começou a edificar, e a favor daqueles que, aqui ou algures, aspiram à tirania.
Nuca mais colocarei o retrato de um homem nas paredes da minha casa.
No canto da biblioteca reservado aos historiadores da Revolução Francesa tirei também as duas grandes gravuras da época, intituladas Jornada de 21 de Janeiro de 1793, Jornada do 16 de Outubro de 1793; vê-se aí o carrasco mostrar à multidão a cabeça de Capet, um outro carrasco erguer a cutelo da guilhotina, enquanto os auxiliares mandam subir para o cadafalso Maria Antonieta. A multidão aplaude. Convencional, teria votado pela morte de Luis XVI e pela de Maria Antonieta; quero com isto dizer que hoje ainda, em circunstâncias análogas, votaria a morte. Mas Meyerhold que amo, que amava, foi fuzilado, em execução de um julgamento injusto, ditado por Estaline, que eu amava. Nunca mais poderei alegrar-me por o sangue ser vertido, mesmo o dos meus inimigos, excepto se for por mim mesmo, em combate leal.
Não tenho o coração enternecido. Um dia, expulsei de minha casa a mulher que mais amei; vi-a descer a escada, arrastando atrás de si as bagagens; voltou para mim o seu rosto inundado de lágrimas, esse rosto de que há pouco cada expressão se inscrevia no fundo do meu peito, enchendo-me de angústia ou de felicidade, não verti uma lágrima. Em seguida, ela voltou aos meus sonhos, puniu-me de ciúme, como nos primeiros tempos em que a conhecera; via-a descer a escada, como no dia da partida, mas era um rosto alegre que voltava para mim : « Vou ter com o meu amante», dizia. Mas também nos meus sonhos a apaguei, e nunca mais penso nela.Outra coisa : em Junho de 1940, a derrota do meu país não me fez deitar uma única lágrima; estava até alegre; os Franceses irritavam-me por causa do seu gosto exagerado pelas vivendas dos subúrbios e dos automóveis pequenos.
Mas chorei no dia da morte de Estaline. E chorei novamente no caminho para Moscovo, em Praga, chorei durante uma noite inteira, quando tive de o matar uma segunda vez, no meu coração, depois de ter lido o relato dos seus crimes. Na mesma noite, chorei por Meyerhold, assassinado por Estaline, e por Estaline assassino de Meyerhold. Citava para mim Shakespeare, Júlio César, acto III, cena II, Brutus :
« Amava César, e choro-o; foi feliz nas suas iniciativas e congratulo-me por isso; foi corajoso, e presto-lhe homenagem; mas decidira proclamar-se rei, e matei-o.»
Repetia : « Amava Estaline, e choro-o; foi feliz nas suas inicitivas e congratulo-me por isso; foi corajoso, e presto-lhe homenagem; mas foi um tirano, e mato-o...»
Ao regressar a casa, pus no lugar do retrato de Estaline a tocadora de flauta que ornamenta o trono de Vénus do Museu das Termas, em Roma. É ainda um poeta inglês que me vêm à memória : « A thing of beauty is a joy for ever.» ( Uma coisa bela é uma alegria para sempre - Tradução da tradutora ). Mas estou como morto.
Julgamo-nos na ponta extrema do nosso tempo e compreendemos subitamente que a história entrou numa nova fase, sem que nos tenhamos apercebido disso.Admiro um homem que tenha ousado decidir mudar o clima de um continente e criar um mar sobre as areia do deserto. *
O bolchevique parecera-me por excelência o homem do meu tempo, e pensava que era sobre ele que eu devia modelar-me, se quisesse verdadeiramente viver o meu tempo, e ele quem eu devia conseguir descrever, com toda a sua realidade, se quisesse ser um escritor que dura, ou seja que descrveu, na sua essência, o mundo do seu tempo. Mas o blochevique é já uma personagem histórica, como os discípulos de Sócrates, os romanos da república, os cavaleiros andantes, os membros da Convenção ou os chefes de empresa que edificam impérios sobre as suas máquinas. Um outro tipo de homem começa a forjar-se, que não advinha ele mesmo os seus traços, e que não se parecerá com nada do que ainda existiu. É preciso plantar aí tudo o que jjá só é vivo na memória. [....]
* Mas acabam de me contar que milhões de árvores foram plantadas num solo onde se sabia que não poderiam crescer, e o canal da Ásia cavado num solo fissurado, porque ninguém ousara dizer a Estaline que se enganava na escolha das essências da cortina de árvores e no traçado do canal. "
( "Escritos Íntimos, Vol. 2 ", pág.15 a 17 - Publicações Europa-América )
Conclusão.
O centenário do nascimento de Roger Vailland é no próximo 16 de Outubro. Até lá ainda voltarei aos seus "Escritos Íntimos" mas não sobre a morte dos mitos.
Hoje passam 40 anos sobre a morte de Che Guevara.
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