07/02/08

Complicar. Joga xadrez ou damas ?

Não sei porquê, mas ao ler este texto do Filipe Nunes Vicente (clicar ), lembrei-me do conto "Os Crimes da Rua Morgue", de Edgar Allan Poe.
O conto começa assim :
" As faculdades do espírito que definimos pelo termo analíticas são em si mesmas muito pouco susceptíveis de análise. Só as apreciamos pelos resultados. O que sabemos, entre outras coisas, é que elas são para quem as possui em grau extraordinário uma fonte dos gozos mais vivos. Tal como o homem forte se diverte com as suas aptidões físicas e se compraz com os exercícios que provocam os músculos à acção, assim também o analista alcança a sua glória nessa actividade espiritual cuja função é desenredar. Extrai prazer mesmo das ocasiões mais triviais que fazem agir os seus talentos. É doido por enigmas , advinhas, hieroglifos; em cada uma das soluções exibe uma força de perspicácia que, em opinião corrente, adquire um carácter sobrenatural. Os resultados, hàbilmente deduzidos pela própria alma e pela essência do seu método, têm realmente todo o aspecto duma intuição.
Esta faculdade de resolução extrai talvez uma grande força do estudo das matemáticas, e particularmente do mais alto ramo dessa ciência, que, muito impròpriamente e só em razão das suas operações retrógradas, foi chamado a análise, como se fosse a análise par excellence (1). Porque, em suma, nem todo o cálculo é em si uma análise. Um jogador de xadrez, por exemplo, faz muito bem um mas não a outra. Segue-se que o xadrez, nos seus efeitos sobre a natureza espiritual, é muito mal apreciado . Não quero escrever aqui um tratado da análise, mas simplesmente pôr à cabeça duma narrativa razoàvelmente singular algumas considerações atiradas completamente ao abandono e que lhe servirão de prefácio.
Pego, pois, nesta ocasião para proclamar que a força elevada da reflexão é muito mais activa e proveitosamente explorada pelo modesto jogo das damas do que por toda a futilidade laboriosa do xadrez. Neste último jogo, em que as peças são dotadas de movimentos diversos e variados e estranhos, e representam valores diversos e variados, a complexidade é tomada - erro muito comum - por profundidade. A atenção é nele muito poderosamente solicitada. Se ela afrouxa um instante, comete um erro, donde resulta uma perda ou uma derrota. Como os movimentos possíveis são não só variados, mas desiguais em força, as hipóteses de semelhantes erros acham-se muito multiplicadas ; e em nove de cada dez casos, é o jogador mais atento que ganha e não o mais hábil. Nas damas, eplo contrário, em que o movimento é unique (2) e apenas sofre poucas variações, as probabilidades de inadvertência são muito menores, e não estando a atenção absoluta e inteiramente monopolizada, todas as vantagens alcançadas por cada um dos jogadores só podem ser alcançadas por uma perspicácia superior.
A fim de abandonar estas abstracções, suponhamos um jogo de damas em que a totalidade das peças esteja reduzida a quatro damas, e em que naturalmente não haja que esperar desatinos. É evidente que aqui a vitória apenas pode ser decidida - sendo as duas partes absolutamente iguais, - através dum movimento recherché (3), resultado dum qualquer esforço poderoso do intelecto. Privado dos recursos normais, o analista entra no espírito do seu adversário, identifica-se com ele, e muitas vezes descobre num único golpe de vista o único meio . um meio por vezes absurdamente simples - de atraí-lo para um erro ou precipitá-lo num cálculo falso."

(1) Por excelência
(2) Único
(3) Rebuscado

pág. 307 e 308 de "Histórias " de Edgar Allan Poe, editado por "Círculo de Leitores " (1973 ? ) com tradução de João Costa

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