10/07/06

" Um povo de homens"...outra vez Ortega y Gasset

" Diante de mim está um jornal onde acabo de ler o relato das festas com que a Inglaterra celebrou a coroação do novo rei ( Jorge VI ). Diz-se que a Monarquia inglesa é desde há muito tempo uma instituição meramente simbólica. Isto é verdade, mas ao dizê-lo assim deixamos escapar o melhor. Porque, com efeito, a Monarquia não exerce no Império Britânico nenhuma função material e palpável. O seu papel não é governar, nem administrar a justiça, nem mandar no Exército. Mas nem por isso é uma instituição vazia, vacante de serviço. A Monarquia na Inglaterra exerce uma função determinadíssima e de alta eficácia : a de simbolizar. Por isso o povo inglês, com propósito deliberado, deu agora inusitada solenidade ao rito da coroação. Face à turbulência actual do continente, quis afirmar as normas permanentes que regulam a sua vida. Deu-nos mais uma lição. Como sempre ( já que a Europa sempre pareceu um tropel de povos ) os continentais, cheios de génio, mas isentos de serenidade, nunca maduros, sempre pueris, e ao fundo, detrás deles, a Inglaterra...como nurse da Europa.
Este é o povo que sempre chegou antes ao porvir, que se antecipou a todos em quase todas as ordens. Praticamente deveríamos omitir o quase. E eis que este povo nos obriga, com certa impertinência do mais puro dandismo, a presenciar um vetusto cerimonial e a ver como actuam - porque não deixaram nunca de ser actuais - os mais antigos e mágicos trambelhos da sua história, a coroa e o ceptro, que , entre nós, regem apenas a sorte do baralho. O Inglês empenha-se em fazer-nos constar que o seu passado, precisamente porque está passado, porque lhe passou a ele, continua a existir para ele. De um futuro ao qual não chegámos, mostra-nos a vigência viçosa do seu pretérito. Este povo circula por todo o seu tempo, é verdadeiramente senhor dos seus séculos que conserva em posse activa. E isto é ser um povo de homens : poder hoje continuar no seu ontem sem deixar por isso de viver para o futuro, poder existir no verdadeiro presente, já que o presente é só presença do passado e do porvir, o lugar onde pretérito e futuro efectivamente existem.
Com as festas simbólicas da coroação, a Inglaterra opôs mais uma vez ao método revolucionário o método da continuidade, o único que pode evitar na marcha das coisas humanas esse aspecto patológico que faz da história uma luta ilustre e perene entre os paralíticos e os epilépticos."
Ortega y Gasset no "Prólogo para franceses ", escrito em Maio de 1937, ao seu livro "A Rebelião das massas" ( Edição da Relógio d' Água" )

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